terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Sozinhos na escola

O Miro (pode ser este o fictício nome do jovem) percorreu a via-sacra de várias escolas, até chegar àquela, por recomendação de uma técnica de serviço social e de uma psicóloga. O seu calvário académico incluía várias passagens pelo ensino especial e por outros padecimentos. 
Um professor aproximou-se do jovem recém-chegado e propôs-lhe que escrevesse as suas primeiras impressões da nova escola. 
Não sei, não sou capaz, não faço. E você não me pode obrigar!...
O professor insistiu com jeitinho. Mas?

?Mas eu não sou obrigado a fazer. Você num manda em mim. Você não é meu pai!
O professor era dos teimosos, mas logo ouviu a sugestão:
Ponha-me lá fora. Na outra escola, quando me portava mal, os setôres punham-me lá fora. Marque-me uma falta e pronto!
O Miro não sabia que só estava carente de firmeza e carinho. O pai não poderia dar-lho porque, há muito abandonara a família. A mãe ?já não tinha mão nele e que nem pensasse tocar-lhe?. Professores, a julgar pelo condicionamento que nele se tinha operado, poucos teria encontrado pelo caminho. O Miro tinha passado sete anos sozinho em casa e outros tantos na escola, e deixara de acreditar ser possível aprender: 
- Ó setôr, você num sabe que eu, na outra escola, só tinha aulas de Educação Física, EVT e Moral?
À quarta tentativa de persuasão, quando lhe pediram que fizesse algo de que ainda se lembrasse, o Miro pediu-lhe que o dispensassem da tortura da escrita e lhe ?ditassem umas contas, mas só de dois números?, pois apenas se recordava (e mal) das contas de somar e de diminuir. 
- Eu sou assim, setôr. No hospital, a psicólica até disse à minha mãe que eu sou atrasado da cabeça p’raí uns cinco anos.
Todas as escolas deveriam ser espaços produtores de culturas singulares, mas também espaços de múltiplas interacções, comunicação, cooperação, partilha... Sabemos que não é bem assim. As escolas são, quase sempre, espaços de solidão. O trabalho dos professores é um trabalho feito de solidão e a solidão dos professores é da mesma natureza da solidão dos alunos ? professores e alunos estão sozinhos nas escolas 
Decorridos dois meses, o Miro já escrevia algumas frases, já fazia as suas preparações no laboratório das Ciências, até já lia palavras em? Inglês! E foi a professora de Inglês que protagonizou um episódio que viria a influenciar o curso da recuperação do Miro.
Perante uma atitude menos correcta do Miro, a professora repreendeu-o. Porém, apercebendo-se das nefastas consequências da reprimenda num momento ainda tão frágil da reciclagem dos afectos, emendou a mão como pôde, explicou-lhe o essencial da asneira, e pediu desculpa ao Miro pelo exagero posto na repreensão. 
- Aqui, os professores pedem desculpa? ? inquiriu o Miro, estupefacto.
- Claro ? respondeu a professora de Inglês.
O Miro reagiu com um esgar de espanto, deu uma volta e seguiu viagem, para que a professora não visse que pela sua cara de traquina inveterado passeava a manga da camisola com que limpava uma lágrima teimosa.
Em todos os anos lectivos, há alunos que mudam de escola, por qualquer razão. Se aos pais assiste o direito constitucional de escolher a escola que consideram mais adequada aos seus filhos, ainda bem que tal acontece. Mas disse-me uma amiga que alguém lhe disse que outro alguém lhe dissera que alguém terá dito que a escola que acolheu o Miro ?não aceita qualquer aluno, que os selecciona?. 
Este e outros malfazejos disparates visam denegrir a imagem dessa escola, pelo que se justifica divulgar o exemplo do Miro. Por mais inverosímil que possa parecer, é bem real. E não se pense ser um caso isolado. Poderia aqui trazer dezenas de casos semelhantes, que têm por centro os tais ?alunos seleccionados?. Poderia contar-vos muitas histórias de crianças recuperadas nesta escola de última oportunidade. A história da Ana liberta de quatro anos de degredo num fundo de sala, rotulada de burra. A do Francisco, que, chegado à nova escola, desatou aos pontapés nos novos colegas, a cuspir e a insultar, por ser a gramática que secretamente aprendera em três anos de insultos e humilhações. O Eduardo, após meses de privação de recreio, só porque o seu braço doente o impedia de acompanhar a turma na escrita de carreirinhas de letras. O Joaquim, que se gabava de, na outra escola, ?ter posto um professor no hospital?. O Pedro, o choro em forma de criança nos primeiros dias na nova escola, porque, se já sabia ler quando entrou para a antiga, foi forçado a esquecê-lo e a ?acompanhar o resto da classe?, acumulando cansaços e desgostos que, face ao estado em que chegou, quase diríamos ser possível a uma criança odiar. Do órfão ao maltratado, chegam encaminhados por instituições de reinserção social, chegam de lugares distantes, com marcas de violência e experiências de indiferença, que é a pior forma de abandono. Estavam sozinhos na escola. Deixaram de estar sozinhos na escola dos alunos ?seleccionados?, escolhidos, apartados, rejeitados? noutros lugares. Dentro dos seus humanos limites, a escola de que vos falo a todos acolhe, a todos ajuda na recuperação da auto-estima, do respeito por si próprios. Dirão alguns leitores que todas as escolas têm este tipo de alunos. A diferença está em que a nova escola do Miro tem mais. Tem os que lhe cabe em sorte e os que outras rejeitam. 
Os habituais ?críticos? da escola que acolheu o Miro terão aqui matéria para reflexão. Já algum desses ?críticos? se terá lembrado de denunciar esta ?selecção??

José Pacheco; Jornal a Página da Educação, ano 12, nº 120, Fevereiro 2003, p.5

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